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    Odontologia livre de mercúrio está nas mãos de Tarcísio

    Governador tem até o dia 7 para decidir se dará o exemplo para o Brasil e o mundo no banimento das restaurações de amálgama com o metal altamente tóxico

    Tarcísio de Freitas (Foto: Patricia Cruz/Governo do Estado de SP)

    Por Cida de Oliveira* - O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem até o dia 7 de outubro para sancionar ou vetar o Projeto de Lei que disciplina em todo o estado a utilização de amálgamas contendo mercúrio em restaurações dentárias. Aprovado em plenário da Assembleia Legislativa (Alesp) em 27 de junho, o PL 1.475/2023, de autoria do deputado Maurici (PT), tem efeito imediato para proteção de gestantes, mulheres que estejam amamentando ou em idade reprodutiva. E também de crianças, adolescentes menores de 14 anos, pessoas com doenças neurológicas ou renais e também aquelas com histórico de intoxicação ou mesmo exposição prolongada ao metal pesado altamente tóxico. Para esses grupos, restaurações com essa amálgama ficam proibidas assim que o projeto for publicado. Ou seja, após sancionado pelo governador.

    Mas o projeto é mais amplo. Determina um prazo de três anos para a abolição total dessas restaurações de amálgamas com mercúrio, inclusive encapsulado. Em junho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) atualizou resolução de 2019, proibindo em todo o país a fabricação, importação e comercialização, assim como o uso em serviços de saúde, do mercúrio e do pó para liga de amálgama não encapsulado. O mercúrio é tão perigoso que, agora em setembro, a Anvisa também proibiu a fabricação, importação, comercialização e o uso em serviços de saúde de termômetros com mercúrio e colunas de mercúrio para medição de pressão arterial.

    A proposta aprovada pelos deputados ainda estabelece um plano de redução gradativa para uma odontologia sem mercúrio, que deverá conter um cronograma de substituição do metal tóxico por materiais adequados. A destinação das sobras desse produto tóxico é outra preocupação do plano, que veda o descarte. Isso devido a cuidados necessários para evitar contaminação ambiental.

    Por isso, segundo o projeto aprovado no legislativo paulista, o plano com vigência de 10 anos deverá ser encaminhado aos órgãos fiscalizadores competentes. É o caso do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO-SP), Secretaria Estadual de Saúde e Vigilância Sanitária. “Prejudicial à saúde e à natureza, o mercúrio na odontologia já é proibido em vários países. E agora conseguimos a restrição paulatina até a extinção completa do uso de amálgama de mercúrio na odontologia em São Paulo”, disse Maurici logo após a aprovação pelos deputados.

    A apresentação e aprovação do PL 1.475/2023 atendem a determinações da Convenção de Minamata sobre o Mercúrio, da qual o Brasil é signatário. Em vigor desde 2017, o acordo tem seus objetivos e cronograma aprovados em conferências periódicas organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na mais recente, em 2022, na Indonésia, mais de 130 países concordaram em proteger as populações vulneráveis do uso do amálgama na odontologia e tomar medidas o mais restritivas possíveis para vedar o uso do metal tóxico.

    A Convenção visa proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos nocivos das liberações de mercúrio e seus compostos. E evitar que se repitam tragédias, a exemplo daquela causada pela antiga indústria química Chisso entre as décadas de 1950 e 1960. O vazamento de mercúrio para a baía de Minamata, no Japão, e a contaminação da água e de peixes só foram notados muito tempo depois, quando animais e aves marinhas passaram a manifestar alterações em seu comportamento. Os gatos na Baia de Minamata apresentaram problemas neurológicos graves e, morriam com a boca espumando ou se atiravam ao mar. E passaram a nascer muitas crianças com graves deformidades, com cegueira, surdez, perda de equilíbrio e danos irreversíveis ao sistema nervoso central. Essas crianças acabavam isoladas, para evitar um suposto contágio da doença supostamente contagiosa.

    Só com as mortes e a pressão popular começaram a ser feitos os estudos. Em meados de 1956, haviam sido identificados 40 pacientes, dos quais 14 morreram. Uma taxa de mortalidade de 36,7%. Tudo ficou explicado: altas concentrações de mercúrio em peixes e frutos do mar, a base da alimentação da população litorânea, de animais domésticos e aves marinhas. Ao todo, até hoje, são estimadas em mais de 70 mil as vítimas em Minamata, sendo pelo menos mil mortos. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 2019 cerca de 2 milhões de pessoas em todo o mundo morreram devido à poluição química. Muitas das quais, segundo especialistas, em consequência do mercúrio.

    De acordo com a Campanha Mundial por uma Odontologia sem Mercúrio, a eliminação do metal já avançou em diversos setores, conforme determina a Convenção de Minamata. Mas nos consultórios dos dentistas mundo afora é mais devagar. Para se ter uma ideia, o uso do amálgama dentário corresponde a 10% do consumo global de mercúrio. Isso equivale a aproximadamente 306 toneladas/ano, o que coloca a odontologia entre as atividades de maior consumo do metal altamente tóxico em todo o mundo. E ao mesmo tempo incentiva a continuidade da produção e o comércio. Ou seja, um entrave para o alcance das metas da Convenção de Minamata.

    Em 11 de agosto, especialistas em saúde e meio ambiente de diversos países em todos os continentes enviaram uma carta ao governador Tarcísio de Freitas. Com apoio de universidades, institutos, sindicatos e organizações socioambientais do Brasil e do Exterior, os signatários elencam argumentos, respaldados em estudos científicos, que não deixam dúvidas sobre as altas concentrações de mercúrio no organismo daqueles que têm essas obturações cinza em sua boca. E nem sobre a relação com alterações que colocam a saúde e o meio ambiente em risco, reforçando que as determinações aprovadas pelos deputados têm de ser transformadas em lei estadual.

    Entre esses argumentos, pesquisas como a da Universidade de Calgary, no Canadá, que analisaram concentrações de mercúrio no leite materno de 33 mulheres lactantes, proporcionais à quantidade de restaurações dentárias de amálgama de mercúrio que tinham. Os estudiosos, que já conheciam o mecanismo de transferência do metal para o feto por meio da placenta, descobriram então que o mesmo se dá também pela glândula mamária. A constatação foi que os recém-nascidos estariam recebendo partículas de mercúrio no alimento que deveria conter apenas os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento saudável. No caso da transmissão placentária, já é sabido que as partículas podem atingir o cérebro do feto e causar danos irreversíveis, como perda de audição, déficit cognitivo, retardo no desenvolvimento e malformações.

    Do mesmo modo, segundo pesquisas, essa relação entre a presença de restaurações e a concentração de mercúrio está associada também a distúrbios renais, cardiovasculares e imunológicos, comprometimento da visão e do sistema respiratório, entre outros.

    Mais volátil dos metais pesados (evapora até mesmo em temperaturas negativas), o mercúrio prejudica sobretudo a saúde de quem trabalha nos consultórios e laboratórios odontológicos. Segundo a carta dos especialistas ao governador, estudos apontam a presença de suas partículas no sangue de trabalhadores expostos. Um acúmulo que pode causar deficiências neurológicas, desequilíbrios hormonais e distúrbios reprodutivos. Segundo pesquisadores, as concentrações nesse grupo são significativamente mais elevadas, com as maiores médias registradas em dentistas mais velhos e experientes.

    Mais recentemente, estudo liderado por pesquisador do Instituto de Pesquisa de Rocky Montain, nos Estados Unidos, sugere relação entre o mercúrio e o Alzheimer. A conclusão veio após a revisão da literatura científica, com colaboração de colegas estadunidenses e alemães. Eles encontraram pesquisas que mostram que pacientes diagnosticados com Alzheimer apresentam níveis mais altos de mercúrio cerebral, no sangue e nos tecidos. E ao analisar que as maiores fontes exógenas de mercúrio cerebral vêm de amálgamas dentárias, deduziram que metal pode estar entre as causas da doença degenerativa.

    Conforme outros estudos mencionados na carta a Tarcísio, os danos do amálgama com mercúrio já eram conhecidos em meados do século 19. Tanto que em 1840 a Sociedade Americana de Cirurgiões Dentistas o reconheceu como nocivo. E em 1926, o químico Alfred Stock, que conduziu estudos pioneiros sobre o mercúrio, identificou o amálgama como fonte de vapor desse metal. E alertou que este deveria ser abolido da odontologia. A partir de então muitas outras pesquisas têm sido publicadas nesse sentido.

    A defesa do banimento de um metal altamente tóxico nas restaurações, porém, não é unânime no Brasil. É o que mostra publicação conjunta do Conselho Federal de Odontologia, autarquia federal que regulamenta o exercício da profissão, e a Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica, que reúne alunos de graduação, pós-graduação, professores e pesquisadores na divulgação da pesquisa científica na área.

    Intitulada O mito da remoção segura de amálgama e a ‘odontologia biológica’, a publicação afirma que “receios sobre contaminação e risco ambiental relacionados ao amálgama estão presentes na história da odontologia ‘há séculos’ (sic)”. E que “nas restaurações dentárias, entretanto, o mercúrio está presente primariamente em sua forma inorgânica, que é mais segura”. Além disso, que “não foi mostrado causar doenças às pessoas”.

    O documento publicado pelas entidades afirma também que “estudos mostraram que os níveis de mercúrio liberados de restaurações são tão baixos que nem mesmo níveis muito maiores àqueles associados a uma boca cheia de restaurações de amálgama representam perigo à saúde”. A Organização Mundial de Saúde (OMS), no entanto, esclarece que a exposição ao metal – mesmo em pequenas quantidades – pode causar sérios problemas de saúde. E reitera que é uma ameaça ao desenvolvimento fetal, ainda no início da vida, o que o torna um dos dez principais produtos químicos ou grupos de produtos químicos que causam maiores preocupações à saúde pública.

    A propalada inócua “boca cheia de restauração de amálgama”, diga-se, tem como referência o único estudo do dentista estadunidense John E. Dodes, publicado em 2001. Além de ter exercido sua profissão na Força Aérea dos Estados Unidos, ele editou sites sobre o tema na internet e mediou grupos de discussão de caráter negacionista. Intitulada “A controvérsia da amálgama”, a pesquisa de Dodes concluiu que “existem numerosos erros lógicos e metodológicos na literatura anti-amálgama”. E que as “evidências que apoiam a segurança das restaurações de amálgama são convincentes”.

    Dodes concluiu ainda que “vários pacientes e profissionais de saúde acreditam que as restaurações de amálgama dentária são um fator em uma série de doenças e condições”. E que “eles foram influenciados por relatos de casos anedóticos na literatura médica e odontológica, pesquisas publicadas na literatura arbitrada e histórias da mídia sobre os alegados perigos das restaurações de amálgama”.

    “Acompanho a Convenção de Minamata desde as primeiras discussões, e o avanço de seu objetivo depende muito do compromisso efetivo dos governos e gestores. E nesse meio há um forte lobby do comércio poluente de mercúrio, para as coisas permanecerem como estão. Ou seja, que continue utilizando um metal tóxico nos produtos, como amálgama, e em processos, como a célula eletrolítica de mercúrio. A indústria está sempre em evolução e nestes dois exemplos, há substitutos, e por isso já estão sendo banidos”, disse o coordenador da Aliança Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio no Brasil, Jeffer Castelo Branco. Doutor em ciência, pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Saúde Socioambiental (Nepssa) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro da Comissão Nacional de Segurança Química (Conasq), ele atua há mais de 30 anos em questões relacionadas à exposição química humana. Sobretudo causada pela poluição do ar, águas e solo e pela presença de substâncias químicas indesejadas em produtos, alimentos e bebidas.

    Castelo Branco, fazendo coro com outros especialistas afirma que convivemos com uma perigosa contradição: que o amálgama é considerado restauração, mas as sobras de restaurações ou os fragmentos de amálgamas removidos da boca das pessoas são considerados resíduos perigosos. Ele afirma que esse paradigma não se sustenta mais na sociedade moderna. “Como a máxima atribuída a Einstein, não podemos resolver um problema com o mesmo pensamento que o criou”.

    Na sua avaliação, a sanção do PL 1.475/2023, convertendo-o em lei estadual, será um passo de vanguarda para o cuidado em saúde bucal da população do Estado de São Paulo. “E nesse sentido, um exemplo para o Brasil e o mundo. É de fato uma importante decisão, principalmente para a população que mais precisa, sendo aquela que depende do serviço público”, disse.

    Segundo Castelo Branco, o banimento do amálgama dentário de mercúrio contribuirá para diminuir a exposição a substâncias químicas perigosas para as presentes e futuras gerações. “E com isso se alinhar com o que a Constituição Federal preconiza sobre nosso dever em promover o equilíbrio ambiental”.

    Na carta ao governador, os ativistas apelam pela sanção também como forma de efetivar avanços que começaram no estado. Em 2023, apenas 6,66% de todas as restaurações feitas no serviço público paulista foram com amálgama de mercúrio. E nos últimos quatro anos, cerca de 93% das suas restaurações, em torno de 5 milhões, foram feitas sem o amálgama.

    Comparada com a população brasileira, porém, significa que o estado foi responsável por quase metade (cerca de 49%) de todas as restaurações com amálgama de mercúrio no Brasil. Isso equivale a 351 mil obturações, o que indica que é preciso avançar.

    Além disso, Tarcísio deverá levar em conta também que sua decisão poderá impactar iniciativas semelhantes em outras regiões do país. É o caso de estados do Norte, onde a contaminação por mercúrio ultrapassa limites permitidos pela Organização Mundial da Saúde. Estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com participação de universidades e entidades ambientalistas e de pesquisa sobre os povos indígenas encontrou níveis de contaminação por mercúrio além do permitido em seis estados amazônicos.

    Ainda segundo as entidades, o governo tem nas mãos a chance de seguir o caminho não só de países da União Europeia, que anunciaram o fim do uso do amálgama já a partir de 1º de janeiro próximo para toda a população dos 27 países-membros. Mas também de países com realidades tão diversas às dos europeus, como as Filipinas. O país asiático proibiu imediatamente o uso de amálgama em mulheres grávidas, menores de 15 anos, mães que amamentam e pessoas com sistema renal e imunológico comprometidos. E já ordenou a suspensão do amálgama dentário para toda população, em todo país, em até três anos. Ou mesmo o Nepal, também na Ásia, que anunciou recentemente seu cronograma de eliminação.

    * Jornalista

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