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    Roberto Ponciano

    Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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    A importância da democracia para o marxismo ou para além do marxismo vulgar

    Dizer que todo Estado é uma ditadura de classe para Marx é um truísmo

    Karl Marx (Foto: Reprodução)

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    Um pequeno texto no X, bastante interessante, curioso e bem-feito, do perfil “Pensar a história”, me instigou a redigir este texto. O texto, repassado em parte aqui - “A exaltação da democracia liberal como um valor abstrato, como uma virtude idealizada, é uma atribuição dos liberais — não da esquerda. Para a esquerda, — ao menos, os setores da esquerda influenciados pelas teorias marxistas — o que nós chamamos de "democracia liberal" é, na prática, uma autocracia da burguesia. Um sistema onde as classes dominantes detêm pleno controle sobre toda a estrutura política, aparelhos ideológicos e as instituições do Estado., tem mais qualidades que defeitos”; https://x.com/historia_pensar/status/1818368522088538176 –, é um post do X-Twitter, do lado certo da trincheira, destinado a defender os resultados legítimos da eleição na Venezuela, mas peca, talvez por ser um texto de internet, a reduzir a democracia a uma aparência sem essência, que não teria importância estratégica no debate do socialismo.

    Este texto, agora iniciado, não é um texto de polêmica com o texto do “Pensar a esquerda”, mas uma contribuição à discussão sobre a questão de democracia formal burguesa dentro do socialismo, partindo da preocupação de se pontuar qual o lugar correto das liberdades e garantias fundamentais, das conquistas formais de classe em três dimensões: 

    1) No aspecto conceitual teórico, partindo de como ela foi visto por Marx, Lênin, Gramsci e Althusser, seu papel estratégico e inerente a uma dinâmica de uma ampliação da democracia e não de seu aviltamento;

    2) No aspecto estratégico de sua importância na luta de classes, no movimento social e de massas, na perspectiva de uma estratégia global-mundial de luta pelo socialismo;

    3) Na importância da vida dos indivíduos, incluindo-se aí os da classe trabalhadora, do proletariado, em sua dimensão de perspectiva de sobrevivência e luta.

    É, infelizmente, da tradição de uma certa forma maniqueísta e vulgar de se fazer marxismo, reduzir a democracia a uma questão meramente formal. Partem de uma visão correta, marxista, de que o Estado burguês é uma ditadura de classe, de uma minoria contra uma maioria, para uma versão reificada e rebaixada de marxismo, no qual não se procede a nenhuma análise. Qualquer análise a ser feita, é apenas uma averiguação de uma aforismo superficial, de que a democracia também é uma ditadura de classe da burguesia sobre o proletariado, como se tudo que Marx e os marxistas tenham dito sobre a democracia tenha sido isto. É uma forma de fazer análise na qual a realidade não é averiguada, e fatos são ventilados com desdém, para provar aquilo que foi dito antes, sem nenhuma diferenciação concreta da forma de Estado para Estado, ou de manifestações concretas do fenômeno de nação para nação.

    Em lugar de se averiguar cada forma que toma esta democracia e este Estado em cada parte, tentando compreender suas contradições, o estágio de desenvolvimento das classes e das frações de classe em cada país, sua dinâmica interna, suas correlações com as dinâmicas de outros países, apenas se averígua se no aparelho de Estado existe um governo discursivamente mais ou menos “progressista”, e, a partir daí, se qualifica, aprioristicamente se devemos ou não apoiar aquela prática. O que inclusive maniqueíza o debate.

    Este debate antropomorfizado e manquetola, sejamos justos, não é invenção dos “geopolíticos” – eu chamo de geopolíticos aqueles que fazem este debate rebaixado, que substituiu a disputa que existia no debate teórico entre Bloco Socialista x Bloco Socialista por uma disputa entre um suposto Bloco Chinês, dos Brics, ou do Sul Global contra o Bloco Unipolar hegemonizado pelos Estados Unidos –, mas sim, foi continuado por eles, de maneira que, em lugar de se demorar na análise de cada país e de cada arranjo interno de classes, frações de classe, disputas, partidos, formas próprias de governo; tudo é substituído por uma ideia de “nós e eles”, que cai facilmente em armadilhas do tipo, festejar governo Talibã, ou defender fundamentalismo islâmico no Irã, pelo simples fato de o Irã ter um governo antiestadounidense.

    Mas, para entender isto, temos que voltar a Marx e a ideia de Estado. Dizer que todo Estado é uma ditadura de classe para Marx é um truísmo. Ou seja, uma verdade que parece óbvia, mas que esconde todo um processo de análise anterior, que é perdido, para aí se transformar a análise dialética no contrário do que era para Marx. Este tipo de verdade reificada religiosa, que alguns pretendem também chamar de marxismo, fez Marx declarar: “eu não sou marxista”. O fato é que para se entender como a democracia era estratégica para Marx, tem que se entender de que lugar ele parte para fazer a crítica do Estado.

    Marx cria a dialética marxista a partir da dialética hegeliana. Na dialética hegeliana, o Estado tinha um papel central na dinâmica de todas as relações. Para Hegel, o Estado era o ente racional que dirimia as contradições egoístas da classe e dos indivíduos. Assim, para Hegel o Estado não era um órgão de opressão de uma classe para outra, mas sim, o ente no qual estes interesses egóicos serão resolvidos, já que ele era uma espécie de espaço ampliado da Sociedade Civil (guardem este termo). A Sociedade Civil para Hegel seria a somatória não matemática, nem cartesiana ou linear da dinâmica do Estado, e o Estado regeria harmonicamente a sociedade civil a partir da sua burocracia. Aliás, para Hegel, a burocracia estatal (como uma forma de Príncipe moderno ampliado da Razão), não seria um corpo estranho dentro do Estado, mas a organização própria do Estado para a realização desta harmonia universal. Hegel pensa o mundo como o desdobramento da Razão em si mesma através da História, para que seu sistema chegue a um fim e ao funcionamento perfeito, o Estado tem que realizar esta Razão sobre uma espécie de Astúcia da História, que vai autocorrigindo seu rumo até que a história chegue a seu fim, tanto no sentido final, como no sentido finalístico, de autorrealização ao desdobrar-se no mundo. A Razão se torna uma espécie de deus ex machina, que opera as arestas do funcionamento de todos os conflitos no mundo, para que, ao fim e ao cabo, ela se realize como um projeto pronto e acabado de Estado (ironicamente para o dialético Hegel, o Estado prussiano, do qual era funcionário, seria uma destas formas de “fim da história”).

    Marx, que começa a pensar história de uma forma estritamente hegeliana, inclusive reduzindo a política à racionalidade e pensando que através da Razão e da racionalidade da política no Estado se poderia chegar uma forma racional não egóica de satisfação dos conflitos (ver os primeiros escritos dele sobre “os vis apetites do comunismo vulgar e seu rebaixamento da política”), vai, no processo de amadurecimento do “Jovem Marx”, dialético e tortuoso, que parte da adesão quase que incondicional aos Jovens Hegelianos, revolucionários apenas no sentido burguês, para uma crítica ao hegelianismo, primeiro através de Feuerbach, trilhando um retorno ao materialismo vulgar, mas, depois, numa síntese genial, única e inovadora, tomando de volta o método hegeliano e o voltando contra si mesmo. Vejamos a citação da Tese I sobre Feuerbach

    A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias — o de Feuerbach incluído — é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado activo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo — mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria actividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. Não compreende, por isso, o significado da actividade “revolucionária”, de crítica prática. - Karl Marx e Friedrich Engels – Teses sobre Feuerbach - https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm

    Ora, este retorno a Hegel, não nos permite, continuadores de Marx, de pensar a aparência como algo destacado da essência, mas sim, como parte integrante, superfície do fenômeno, mas inerente a todos os seus aspectos internos. Marx retoma o método hegeliano, agora duplamente voltado, contra o próprio Feuerbach, para entender a dinâmica de funcionamento da estrutura e da superestrutura a partir da história, mas sem partes estanques, de forma que a superestrutura de pensamento funcione como condicionante intrínseca dos processos e aspecto cabal de dinâmicas diferente do mesmo modo de produção; do outro lado contra Hegel, como crítica visceral do Estado. O Estado deixa de ser o ponto central para Marx, e não há mais dicotomia entre interesses mesquinhos, baixos e vis, que seriam dirimidos pela política e pelo Estado, em detrimento de uma classe sofredora universal, que precisaria ser guiada por uma espécie de minoria culta (e por esta razão Marx se tornará inimigos das ideias conspiratórias que ele proclamará como utópicas) para a Razão e a política. Marx inverte a forma de se fazer a análise, não parte mais do Estado para entender a Sociedade Civil, mas da Sociedade Civil organizada para entender o Estado como corolário final de funcionamento desta sociedade, arena de disputa entre classes e frações de classe antagônicas. O Estado perde seu papel harmônico, é despido de sua aura de santidade, e nu e vil, é denunciado como o órgão de coerção (mas também de mediação) da luta de classes da Sociedade Civil, que, esta sim, é o moto contínuo da história, o proletariado deixa de ser o sujeito passivo, classe sofredora universal, para ser o sujeito ativo portador de uma estratégia de democracia revolucionária de massas.

    Pode parecer uma digressão, mas não o é. É fundamental recuperarmos a dialética no marxismo. Se repararmos acima, Marx vai retirar da luta no Estado o papel central da dinâmica da vida social. A luta pelo aparelho de Estado é central, mas é o cume da disputa entre classes pelo controle hegemônico na sociedade. Assim, dizer que “o Estado é o órgão de repressão de uma classe por outra”, é dizer pouco sobre Marx, e, muitas vezes, serve para se voltar a formas hegelianas ou pré-hegelianas, na maioria das vezes positivistas e maniqueístas de análise, nas quais, em lugar de se tentar deslindar e entender o funcionamento desta mesma sociedade civil, a dinâmica das classes, das frações das classes, suas divisões em partidos e movimentos políticos, basta substituir todo este árduo e demorada trabalha por substantivar um Estado de “burguês”, aí está toda a análise, preguiçosa e mágica.

    Marx nunca fez este tipo de vulgata. Se pegarmos a trilogia “Luta de classes na França”, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” e “Guerra civil na França” – ou seja, um histórico da República Democrática Francesa desde 1848 até 1871 –, teremos, de um lado, a denúncia do papel do Estado como órgão de dominação de classe, como órgão executivo das políticas burguesas; mas, de outro lado, três vigorosos documentos que descem a detalhamento de como estava a situação de cada classe, a divisão interna delas em frações e bandos políticos, como elas se movimentavam e organizavam dentro do aparelho do Estado, de como o aparelho do Estado era utilizado para arregimentar generosas partes do proletariado e do lúmpen proletariado e, até, a crítica – mesmo ao lado do elogio da coragem e da tenacidade da coragem dos operários de tomarem o céu de assalto durante a Comuna de Paris –, da insuficiência organização, de formação e de perspectivas do proletariado e de suas lideranças durante a mesmíssiam Comuna.

    Um olhar com detalhamento, sobre o Marx entre 1848 e 1871, não nos mostra apenas alguém que tinha desdém pela democracia representativa, muito pelo contrário, mostra um intelectual arguto que, se critica os limites desta democracia e a forma como ela se organiza para oprimir uma maioria, também se orgulha de ser, através do materialismo dialético, um continuador dos jacobinos e dos sans culottes, e defensor da República Democrática Burguesa frente ao bonapartismo e formas rebaixadas da República, que limitavam os direitos e garantias fundamentais, que ele colocava na perspectiva de conquistas da classe trabalhadora.

    É bom lembrar que estes princípios e garantias fundamentais (inclusive os trabalhistas) são frutos do suor e do sangue do proletariado. A Revolução Francesa foi burguesa, ao cabo e ao fim dos seus resultados, mas a “burguesia” que fez a revolução, que serviu de bucha de canhão, que deu sua vida na revolução, não é a classe burguesa organizada nas empresas, antes, os habitantes dos burgos, das cidades, na sua maioria proletários, que morreram para enterrar de uma vez por todas uma sociedade em que não tinham quaisquer direitos ou garantias. A igualdade jurídica, longe de ser uma igualdade substantiva, ou uma forma revolucionário socialista, é uma avanço civilizatória claro que Marx sempre defendeu, frente à reação monarquista, feudal ou bonapartista. Marx sempre disse de maneira límpida, que se a República Democrática Burguesa não é o Estado no qual os objetivos de emancipação do proletariado como classe serão satisfeitos, é a melhor arena para a luta de classe pelo socialismo. Neste sentido é fundamental lembrar do papel tanto de Marx quanto de Engels na Primavera dos Povos de 1848-1851. Uma grande revolução democrática burguesa que abalou toda a Europa. Em lugar de ficar, como os patetas que se dizem marxistas, dizendo que “o Estado burguês é uma ditadura de classes”, Marx e Engels arriscaram a liberdade e a vida tomando parte na revolução em ebulição. Marx voltou a Alemanha para trabalhar como propagandista e liderança da revolução e Engels tomou de armas e foi lutar ao lado dos revoltosos não pelo socialismo, mas pela criação de uma moderna república burguesa que unificasse e modernizasse toda a Alemanha – para ambos, um passo importante na luta pela emancipação da classe trabalhadora.

    Então, para Marx a democracia não tinha valor universal (não existem valores universais no marxismo. É uma forma pré-marxista, pré-hegeliana, reacionária e idealista a ideia de “democracia como valor universal”), mas tinha valor de classe e estratégico. O que eu quero dizer com isto, o proletariado, como classe universal, como portador de uma possibilidade de emancipação, só pode realizar sua possível missão histórica ampliando as formas democráticas de participação e luta. Revolução não é diminuição da democracia, é sua ampliação a formas contínuas de participação popular efetivas, que desmitifiquem o papel do Estado e torne os indivíduos partícipes da sua própria história. Marx não acreditava que o Estado era um ente que representava a coletividade, para Marx qualquer forma de representação não participativa era uma forma de alienação. Assim, se ele via na República Democrática Burguesa um avanço em vista das formas preliminares, reacionárias, feudais ou retrógradas (como o bonapartismo, lembrando que Marx não assistiu ao fenômeno fascista e sua análise se restringe no máximo ao bonapartismo, que prenunciava já alguns aspectos do fascismo). Então, a ideia de que a discussão de democracia dentro e fora do Estado não é importante ou estratégica para o marxismo é mentirosa e reducionista.

    Óbvio que Marx não está falando de democracia apenas no aspecto formal, ou eternizando uma determinada forma de Estado com o parlamentarismo burguês. Dialético e histórico, para Marx todo Estado e toda forma de Estado perecerá (inclusive o socialista, forma transitória de governo em evolução para o comunismo). Mas essência e aparência não são dicotômicas para Marx, a aparência de um fenômeno é um aspecto de sua essência, e é necessário fazer a síncrese, a separação de cada aspecto do fenômeno, estudar cada aspecto para só, então, depois fazer sua síntese e sua análise final dialética. Falar que “o Estado A, B ou C é burguês” é, no fundo, apenas e tão somente, preguiça de pensar.

    O problema é quando a preguiça de pensar vira norma, e não analisamos mais cada processo particular, parte-se de uma abstrata posição política de um Estado para catalogá-lo num espécie de sistema de “Estados progressistas” (“nossos” Estados, que devamos defender) ou reacionários. Os “nossos” Estados, de governos progressistas, não devem sofrer nenhum tipo de crítica, antes devem ser defendidos de maneira acrítica, porque seriam portadores de uma verdade eterna na luta contra o poderio dos Estados Unidos. É, de certa forma, uma volta à astúcia da Razão hegeliana, da realização da história, através de uma espécie de Deus ex machina metafísico ateu. Aliás, há em Marx um resíduo hegeliano, quando na análise das perspectivas históricas do socialismo, se faz a comparação entre formas sociais (modo de produção), e, de forma ainda mais estrita em Engels (Dialética da natureza) e daí se chega a conclusão de que, da mesma maneira, que dos seres unicelulares se chega a formais mais complexas de vida, à racionalidade e ao ser humano, ao homo sapiens, assim também, na sociedade, se chegará inexoravelmente ao socialismo.

    Marx e Engels são gigantes e gênios, não significa que não tenham também suas aporias. Hoje se discute e muito se esta não é uma das maiores, porque a forma de organização da vida orgânica e das sociedades se dá através de leis evolutivas, mas de graus e formas diferentes e, hoje sabemos, até pela derrota do Socialismo Real, que a marcha da história rumo ao socialismo não é irreversível. Desde Rosa Luxemburgo e seu dístico, “Socialismo ou barbárie”, que os marxistas se dividem, também, entre aqueles que acreditam no socialismo como necessidade histórica, e os que defendem que o socialismo é uma das possibilidades históricas, que não está pré-determinado e que podemos, inclusive, retornar a formas de civilização mais primárias e caóticas como o fascismo – ver a crítica de Marx ao colonato e ao modo de produção feudal como uma forma de regressão civilizatória.

    Assim, avançamos em entender que, para Marx, entender o Estado burguês como órgão de coerção de classe não é um reducionismo teórico ou histórico, e ele não tinha a habitual preguiça de análise de alguns de seus seguidores, que fundaram uma espécie de culto ateu de uma forma vulgarizada e mecanicistas de marxismo. E é importante entender que o marxismo é uma superestrutura viva de pensamento, que se é inaugurada por Marx e Engels, não morre com eles e tem uma continuidade polimorfa, variada, que avança e muito na análise do Estado capitalista. Começando pelo próprio Engels, em que pese os deslizes dele em dialética da natureza, ao quase igualar às leis sociais às leis naturais e, no mesmo texto, rebaixar o papel do indivíduo na história (obviamente que a história não é feita por indivíduos esparsos, mas ao não analisamos o papel de certos elementos catalisadores de processos históricos com Lênin ou Mao Tsé Tung, compreendemos menos e não mais os processos sociais); apesar deste tropeços, Engels avançou e muito na proposição de tática e estratégia da classe trabalhadora.

    Num texto menos conhecido do cofundador do marxismo, ligado aos primórdios do POSDA (Partido Operário Social-Democrata Alemão) – lembrando que Social-Democrata aí é uma sigla que unia numa mesma organização revolucionários e reformistas –, ele chega a conclusões de extrema heterodoxia. Primeiro ele compara o marxismo com o cristianismo, e diz claramente que se o proletariado não se organizar e a ideia comunista não for absorvida pelas grandes massas, nunca se chegará ao socialismo – o que inclusive contradiz o texto dele mesmo em Dialética da Natureza; Depois ele faz uma análise minuciosa e detalhada do avanço da questão da técnica militar, ao fazer o balanço das experiências revolucionárias de 1830-1871, e condena de forma definitiva a antiga forma de luta, de barricadas e marcha aberta, diante da invenção da espingarda de repetição, da metralhadora, do avanço da artilharia (inclusive dos couraçados, que poderiam facilmente bombardear uma cidade tomada por revolucionários). Aí ele explica novamente que a revolução não é uma conspiração, mas um grande movimento revolucionário DEMOCRÁTICO de massas, que necessitaria de um outro nível de organização, até para que um levante armado não tivesse previamente destinado ao fracasso e não fosse apenas e tão somente o suicídio da vanguarda tão dolorosamente organizada; Em terceiro lugar e o mais importante no texto. Defende a legalização do Partido Revolucionário, que seus líderes e filiados não caiam em provocações, que não sejam levados para confrontos cujo único objetivo seja a justificativa da clandestinidade do partido, e fala abertamente que um forte e poderoso partido operário com assento no parlamento poderia ser um centro irradiador do movimento revolucionário na Alemanha e na Europa.

    Para nossos marxistas preguiçosos, espero que tomar pé de um texto de Engels em defesa de conquistas democráticas formais não faça com que agora eles passe a xingar Engels de revisionista, colaborador de classes ou vendido (outra forma preguiçosa de desistir de fazer a análise antes de começar, eu não querendo dizer com isto que existam de fato colaboradores e traidores de classe). Mas é fato que a figura da “traição” ou da “colaboração de classes”, para explicar todo e qualquer arranjo governamental que não seja a tomada do poder através da força e no qual participem forças políticas progressistas, é de uma pobreza de argumentação do nível de quarta série do antigo primário.

    Efetivamente, a organização dos primeiros partidos operários, seu fortalecimento e crescimento em grandes partidos de massa, mudou a configuração política na disputa do chamado Estado burguês. Isto começa a ser prenunciado no texto de Engels, mas toma forma e corpo de forma mais elaborada nos textos de Gramsci e Althusser. A dicotomia entre reforma x revolução não é uma distinção mecânica de não participação na disputa pelo aparelho de Estado (que é, fundamentalmente, uma disputa dos rumos da sociedade civil). Gramsci vai cunhar o conceito de hegemonia, e vai pensar uma estratégia na qual os movimentos táticos e estratégicas da “época de paz”, da não conflagração de violência entre as classes em luta, estão casados com uma ideia de desenvolvimento da luta pelo socialismo dentro e fora do aparelho de Estado. São os chamados Sujeitos Coletivos, partidos, frações das classes, frações da classe organizadas não em partidos, mas na impressa ou na mídia, grandes corporações, igreja, sindicatos. A Sociedade Civil trava uma guerra silenciosa e permanente mesmo dentro de uma aparente “normalidade”. Os Sujeitos Coletivos são os entes representativos que vão disputar esta hegemonia, sem esta hegemonia, sem esta disputa de corações e mentes, dentro mesmo do Estado burguês e suas estruturas, a possibilidade de uma grande Revolução Socialista é só um sonho de nefelibatas, um messianismo fatalista. Gramsci é fundamental para se destruir a ideia de que não se deve disputar as estruturas de um Estado estruturado para o domínio da burguesia, mas que tem brechas e fissuras que devemos usar como trincheiras e aparelhos para lutar contra nosso inimigo histórico.

    Na esteira de Gramsci, e muito mais heterodoxo que ele, Althusser (que tentou casar marxismo, estruturalismo, Marx, Freud e Lacan), naquilo que nos interesse apenas para o escopo deste texto, vai mostrar que a subjetivação do indivíduo se faz dentro destes Sujeitos Coletivos que e ele chamará de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) – distinguindo dos Aparelhos Repressores de Estdo (ARE) –, é fundamental e rege a dinâmica, inclusive de reprodução de toda a sociedade. Assim, a luta de classes não é feita apenas e tão somente pelos indivíduos, ou mesmo, apenas pelos partidos políticos. Todos os AIE participam desta luta de classes, antecipando e muito a problemática da teologia da prosperidade no Brasil (coisa que Gramsci também o fez, ao analisar o papel da Igreja Católica como Sujeito Coletivo na Itália), e, certamente inspirado pelos estudos de Gramsci, Althusser vai mostrar como o pertencimento dos sujeitos a estes coletivos torna a ideologia força material concreta de persuasão e poder. Assim, se acreditamos ou não que o pastor picareta faça milagres aos domingos, pouco importa, a materialização deste movimento em massas proletárias e semiproletárias, com posições retrógradas a partir de estarem se subjetivando, se organizando a partir de igrejas que, no fundo são células fascistas, é um problema concreto que precisa ser enfrentado e combatido. A luta de classes não se organiza a partir de um partido revolucionário “puro”, que fica esperando uma crise revolucionária (teoria conspiratória não marxista), para aí soar sua trombeta de Josué em Jericó, parar o sol e chamar a massa para a revolução. O buraco é bem mais embaixo, “mai broder”, é escuro, não foi depilado e fede.

    A revolução não é uma espera silenciosa, condenatória a quem disputa o aparelho do Estado como um ser impuro, de despertar de consciência de massas (algo parecido com os Adventistas do Sétimo Dia), enquanto deixamos a elite burguesa tomar conta do “Estado burguês”. Sem táticas de fissura no aparelho de Estado, sem participação, inclusive com políticas públicas de enfrentamento aos processos de perdas de direito e de restrição às conquistas dos trabalhadores, basicamente, sem políticas casadas de luta dentro e fora do aparelho do Estado, nenhum processo socialista de médio e longo prazo é possível.

    Dentro desta ideia, de que lutar pelo aparelho e dentro do aparelho do Estado não basta (o Estado vai ser sempre esta dualidade de órgão de coerção versus órgão de mediação entre as classes), mas é estratégico, e que esta luta deve estar casada com a luta subversiva para além do espaço burguês é que se pode pensar uma política concreta de curto, médio e longo prazo de uma estratégia revolucionária socialista. Óbvio que a crítica de que os partidos socialistas, comunistas e social democratas tem restrito sua luta a lutar dentro do aparelho de Estado é pertinente e fundamental; mas a conclusão oposta, de que devemos não participar do aparelho do Estado e que a estratégia perfeita é esperamos, feito o cachorro espera na esquina o caminhão de lixo passar para ficar latindo para o motorista, é uma alternativa imbecil, do tipo jogar fora a água do banho junto com a criança. Se a crítica às grandes organizações socialistas e social democratas é que elas se aburguesaram, é interessante a falta de autocrítica de organizações extremistas que viraram seitas para se jogar purrinha, que juntam meia dúzia de três ou quatro, que não alcançam 0,5% dos votos nas eleições (segundo o próprio Lênin, as eleições servem, no mínimo para o recenseamento das nossas forças políticas), mas que entoam seus cânticos de pureza, cada vez que um movimento popular assume o governo em algum canto num processo eleitoral.

    A partir destas ideias puristas é que aparece esta pauta meio enviesada de que a luta pelas garantias democráticas é uma “luta burguesa”, que a democracia é apenas uma ilusão institucional burguesa. Nada além de frases. É bem interessante que estas pessoas leiam o marxista revolucionário mais importante até hoje, Lênin, e suas posições em 1905. Se sim, Lênin denuncia o caráter arbitrário, ilusório, limitado do Estado burguês, ele luta impiedosamente, inclusive conclama a luta com armas nas mãos, não pelo Socialismo, mas pelo estabelecimento de um Estado Liberal Burguês na Rússia, em 1905, pré-condição, naquele momento, para que a luta pelo socialismo alcançasse outro patamar e opina, inclusive que os bolcheviques deveriam participar de um governo democrático-revolucionário. Lênin não tinha estas dúvidas idiotas que tem nossos extremistas, porque não era um marxista vulgar, ele sabia muito bem que entre um Estado czarista (que pode em quase tudo, até nos pógroms, ser comparados a um governo fascista – lembrando que o protocolo dos sábios de Sião, documento antissemita, foi criado na Rússia czarista), e uma república democrático burguesa, se deveria garantir, com unhas e dentes os direitos e garantias de uma normalidade democrática burguesa.

    Em conclusão, em relação ao primeiro elemento que prometi, a longa e necessária digressão histórico é para trazer de novo para a discussão a necessária adjetivação de democracia. O rememorar que Marx e Engels se diziam continuadores dos jacobinos, do Iluminismo, dos Enciclopedistas, principalmente dos materialistas. Ambos nunca viram o marxismo como uma superestrutura estanque e apartada no tempo e, pasmem, sim, direitos anteriormente defendidos pelos liberais foram defendidos (até com armas na mão por Engels) por ambos, porque a democracia para eles era um processo estratégico de ampliação da participação no socialismo e não esta confusa ideia não marxista de que democracia é uma ideia “burguesa” – não, queridos, não foram os burgueses que se sacrificaram pelas nossas conquistas democráticas, fomos nós, os trabalhadores. Assim, os direitos e garantias fundamentais são elementos táticos e estratégicos na construção de um socialismo que necessariamente passará pela configuração de uma grande democracia de massas, ou não será socialismo. 

    Em segundo lugar e já umbilicalmente ligado ao aspecto anterior, sem que o socialismo seja um enérgico despertar do proletariado para uma democracia real, efetiva e participativa, não é possível uma estratégia global para disputas de corações e mentes. Não aderirão à luta pelo socialismo massas de despossuídos, de mulheres submetidas e duplamente exploradas, de povos colonizadas e submetidos ao racismo, incluindo o povo negro das favelas brasileiras, de jovens sem perspectiva, sem que entendam que criticar uma forma passageira e transitória de democracia (a democracia representativa burguesa) não é colocar como opção a ela nenhum tipo de Estado que restrinja direitos da grande maioria da população, embora, é óbvio, possa e deva tomar medidas revolucionárias democráticas como a reforma agrária radical e a estatização e socialização dos grandes meios de produção. Mas, para se chegar ao objetivo final, expropriar os expropriadores, descuidar-se do tema da democracia e da garantia dos direitos é jogar as grandes massas populares nas mãos da reação. 

    O terceiro e último aspecto, se não conseguirmos traduzir que nossa luta por uma democracia que não seja meramente formal, mas substantiva e objetiva e que amplia e não diminui os direitos dos indivíduos. Se cairmos nessa esparrela de ficar repetindo a tolice de que a democracia é um tema burguês, não criaremos empatia ou adesão com ninguém. Marx não pensou o socialismo só para socializar empresas, Marx prenunciava a abolição do trabalho e a emancipação plena dos homens e das mulheres. O processo coletivo revolucionário para Marx visava, ao fim e ao cabo, a satisfação plenas das potencialidades de cada indivíduo. Se não recuperarmos este discurso e acharmos que a questão da satisfação individual das necessidades sociais reais (e não das ilusórias criadas pela indústria da obsolescência programada) – que não é só de 3 refeições por dia, é sim, objetivo de socialistas e comunistas, e, para isto, direitos e garantias fundamentais conquistados ainda na democracia burguesa são inegociáveis, falaremos para nós mesmos. 

    Vamos fundar um clube para jogar purrinha, um bando de velhos solitários, presos na década de 60, mas repetindo que somos os últimos puristas da Igreja Adventista dos Marxistas Puristas Vulgares e Toscos dos Últimos dias – uma espécie de seita mórmon ateia.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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