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A recente alta do dólar aponta para a necessidade urgente de desdolarização, diz Hugo Albuquerque

Segundo o analista, a grande crítica que se pode fazer a Lula é não ter caminhado suficientemente rápido com a desdolarização, quando as alternativas estão à mão

(Foto: Reprodução)

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Por Hugo Albuquerque* (Opera Mundi) - Boa parte da estrutura monetária internacional é fruto da hegemonia do dólar, tal como ela se estabeleceu desde 1971. Os Estados Unidos simplesmente puseram abaixo o padrão ouro para imprimir moeda, em tese, à vontade – rompendo com velhos entendimentos acerca do “lastro” monetário, revelando que o verdadeiro substrato de uma moeda é confiança e fé, em que pese isso ter isso ancorado no comércio do petróleo.

A partir daí, surgiu o que o economista grego Yanis Varoufakis chamou de Minotauro Global, isto é, um sistema que permitiu aos Estados Unidos terem déficits comerciais e nas contas públicas por terem um financiamento do resto do mundo – algo que mostrou sua faceta terrível em 1982, com a chamada crise da dívida, quando os EUA aumentaram brutalmente sua taxa de juros, acertando em cheio os países pobres.

O dólar, moeda nacional dos Estados Unidos, passou a funcionar nos últimos 50 anos como moeda global. Isto é, primeiro como moeda comum do bloco capitalista – mas já se infiltrando em um bloco socialista em capitulação – e depois do mundo todo, o que cria aquilo que os franceses chamaram de privilégio exorbitante. O banco central dos Estados Unidos, pela valorização ou desvalorização da moeda obtém, assim, vantagens para sua economia.

O padrão petróleo - Importante lembrar que o fato de 1971 aconteceu em razão dos Estados Unidos imporem o dólar como moeda geral, de uma vez por todas, para a compra do petróleo – criando um lastro móvel ancorado na principal matéria-prima energética do planeta. Essa confiança, contudo, foi garantida pelo poder bélico americano no Oriente Médio, tantas vezes ativado, sujeitando de vez a “economia mundial” a variantes geopolíticas e geoestratégicas.

Uma vez que, soberanamente, aumente sua taxa de juros, os Estados Unidos, por exemplo, atraem capitais do mundo todo para seus títulos do tesouro, isto é, sua dívida. Assim, o dólar se fortalece, mas como em um efeito gangorra, o petróleo vê seu preço cair – ou parar de subir –, o que se tornou uma variável vital no cenário de alta do barril causada pela expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra a Rússia, na Ucrânia.

O efeito disso é básico: o dólar ganha valor sobre as demais moedas, sobretudo de países emergentes e pobres, gerando inflação e forçando a taxa de juros desses países para cima. É como se os Estados Unidos, em seu privilégio, pudessem bombear inflação – a alta dos preços, decorrente de uma alta do petróleo – para os demais países do mundo. Não que juros altos não produzam piora do endividamento interno, mas aí é outra história.

No fundo, isso é possível porque os países, apesar de terem suas moedas próprias, mantêm reservas em dólar, fazem comércio em dólar, possuem dívidas em dólar. Ou seja, todos eles, assim como o Brasil, navegam no oceano do dólar. Por isso, sanções econômicas americanas são, ou eram, eficazes: boa parte dos países ainda necessita de autorizações ou ausência de proibições dos Estados Unidos para se mover no sistema econômico mundial.

A ruptura russa - Isso começa a ser questionado apenas quando uma gigante como a Rússia sofreu sanções pesadíssimas, e sua liderança política foi, no entanto, apoiada, e não derrubada, pelo seu povo. Com o apoio chinês, Moscou contornou as sanções lideradas pelos Estados Unidos contra a ação militar russa na Ucrânia de 2022 para cá. Ironias do destino, no último mês, o rublo russo foi a moeda que mais que mais se valorizou – como isso seria possível?

Primeiramente, os russos estão mais fora do sistema do dólar do que qualquer outro país relevante. Enquanto isso, o aumento do preço do barril nos últimos anos criou uma inflação galopante nos Estados Unidos, combatida com uma persistente alta dos juros. Isso fez a economia americana conter a inflação por meio da mitigação da alta do barril, que chegou a um pico de 122 dólares em abril de 2022, mas hoje custa apenas 86 dólares.

O resumo da ópera é que, se a inflação devorou o poder de compra dos salários nos Estados Unidos em 2022, por outro lado a alta taxa de juros segurou o processo inflacionário, mas os ganhos salariais americanos têm sido pequenos – e não recuperam tudo o que foi perdido naquele ano. Em outras palavras, não é de se estranhar que Biden esteja em apuros diante de Trump, ao contrário de discursos de que a “economia foi um sucesso não compreendido”.

Do outro lado, um silencioso e perigoso processo de endividamento das famílias americanas gera mal-estar e angústia, mas seus primeiros sintomas são inicialmente políticos – igualmente, com a rejeição a Biden e a demais candidatos democratas. O que isso nos importa, contudo? É que o dólar está com o valor inchado por conta de uma taxa de juros americana moderadamente alta, só que mantida por muito tempo.

Sim, a chamada desdolarização é uma realidade. Nem a Bloomberg esconde que isso está acontecendo em uma velocidade impressionante. Os russos o fizeram por necessidade, mas isso abriu um quadro interessante, no qual o próprio BRICS tem sido protagonista, inclusive com movimentos recentes, como o encontro de Dilma Rousseff, presidenta do banco do bloco, com o presidente russo Vladimir Putin.

Sem o dólar como moeda comum, acaba a possibilidade dos Estados Unidos bombear sua inflação para fora, porque esse espaço vazio deixa de existir. Se o comércio mundial parasse de ser realizado em dólares, a moeda americana se tornaria uma moeda comum, e sua valorização teria a relevância do tamanho da economia americana – o que já seria muito –, mas não suficiente para promover uma alteração de todas as trocas internacionais.

A crise cambial global - O fato é que o dólar, neste exato instante, ainda é a moeda universal, seja como reserva ou para trocas comerciais. E o efeito da inércia da taxa de juros nos Estados Unidos é a valorização do dólar sobre quase uma centena de outras moedas. O peso maior foi sobre várias economias latino-americanas, o que transcende o Brasil e os assuntos de política doméstica.

A falácia de que “as falas de Lula serviram para o real perder valor” esconde sim um ataque especulativo, conjugado com a inação do banco central independente em defender a moeda. Pode também servir para justificar a manutenção da taxa de juros brasileira em um patamar alto ou mesmo aumentá-la – assim como força o governo a fazer cortes, o que tem menos a ver com estabilidade sistêmica e mais com os desejos dos credores da dívida brasileira.

Mas a grande verdade é que o buraco é mais embaixo. Esses movimentos das finanças, externos e internos, são possíveis porque há o sistema do dólar. Mas não estamos de volta a 1982 e a crise da dívida. Hoje é possível construir uma alternativa. A grande crítica que se pode fazer ao governo atual é não ter caminhado suficientemente rápido com a desdolarização, quando as alternativas estão à mão.

Entre as declarações acertadas e contundentes de Lula em 2023 sobre a desdolarização, o Brasil fez pouco.  E, hoje, embora seja possível e desejado baixar a taxa de juros por conta do cenário interno, a condicionante externa – objetiva e subjetiva – cria uma pressão adicional sobre a economia brasileira, com a moeda brasileira perdendo valor relativo, o que em seguida piora a perspectiva inflacionária.

Em outras palavras, a banca que teve em Roberto Campos Neto um fiel aliado para manter a taxa de juro real em um patamar demasiado alto em 2023, hoje comemora um cenário externo ruim para a economia real, mas positivo para a especulação – uma vez que o ciclo de queda da taxas de juros pode ser interrompido ou revertido, já que o Brasil precisa ajustar sua taxa de juros à americana para fins da moeda.

De quebra, ainda se pode dizer que uma perspectiva de inflação, ainda nem consolidada, é culpa do “gasto público” – em políticas de saúde e educação –, o que exigiria mais cortes – que visam, dentre outras coisas, sucatear o aparato público e favorecer a privatização ou espaço do setor privado. Isso se trata de uma falácia óbvia, que visa dar dinheiro aos mesmos de sempre, muitos dos quais já são ganhadores da economia dos juros altos.

Sim, em termos conjunturais o governo brasileiro poderia fazer diferente, inclusive no discurso de sua equipe econômica, ou na atuação de seus diretores face à defesa do real por meio de swaps e tributação. Mas o verdadeiro problema é estrutural, e o Brasil, como membro destacado do BRICS, pode fazer mais do que a maioria dos países vizinhos aturdidos pela crise, como Argentina, Chile ou Colômbia.

Esse dólar inchado, e não há verbo melhor para utilizar, não é uma moeda mais forte, mas mais fraca, e exige que a comunidade internacional se mova para não importar os desequilíbrios sistêmicos americanos – o que teve consequências desastrosas em 1982, inclusive para a parte europeia do bloco socialista que supunha que exportar e tomar dívidas em dólares era a salvação da lavoura, bem à moda iugoslava.

Os “desequilíbrios sistêmicos” tem menos a ver com leis econômicas puras e seu funcionamento da realidade, mas de um grande preço, que é o petróleo. Sua variação não só deriva da relação entre o oligopólio dos exportadores de petróleo, organizados na Opep, com os países consumidores, mas também com variáveis estratégicas e geopolíticas, no que diz respeito à extração e distribuição do petróleo e do gás pelo mundo.

É preciso antecipar o parto do novo mundo, por mais arriscado que isso venha a ser – e ele não poderá ser natural. Terá os riscos e os imperativos de perícia de toda e qualquer cirurgia, mas não há escolha. De novo é preciso lembrar do seminal A retomada da hegemonia americana, da professora Maria da Conceição Tavares. Mas sem perder de vista que esse novo momento 1982 está em um contexto geopolítico no qual a Ucrânia é chave.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.

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