STF define 40 gramas ou seis plantas de maconha para distinguir usuário de traficante
Corte descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal
Por Tiago Angelo, Conjur - O Supremo Tribunal Federal concluiu nesta quarta-feira (26/6) o julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha com a fixação de balizas para diferenciar uso e tráfico, encerrando, enfim, uma discussão iniciada em 2015.
Na terça (25/6), a corte já havia decidido pela descriminalização, mas faltava definir uma série de temas, o principal deles envolvendo a quantidade que diferencia usuário e traficante, que ficou fixada em 40 gramas, ou seis pés de maconha. A quantidade é um meio termo entre a proposta do ministro Alexandre de Moraes (60 gramas) e a do ministro Cristiano Zanin (25 gramas).
Outros elementos, no entanto, serão levados em consideração. Uma pessoa apreendida com menos de 40 gramas, por exemplo, pode ser enquadrada como traficante se houver provas de venda da droga, como a presença de balanças de precisão e anotações sobre a comercialização do entorpecente.
Ou seja, a quantidade é um critério relativo, e não absoluto. Ele servirá para que a pessoa flagrada com até 40 gramas seja presumida como usuária se não houver provas de tráfico.
O mesmo vale para o contrário: segundo a tese fixada pelo Supremo, a apreensão de quantidades superiores a 40 gramas não impede que o juiz conclua pela atipicidade da conduta caso entenda que se trata de um usuário.
Eis a tese de repercussão geral fixada pelo Supremo:
1) Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III);
2) As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/2006 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;
3) Em se tratando de posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, sendo vedada a lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado;
4) Nos termos do §2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;
5) A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos indicativos do intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;
6) Nesses casos, caberá ao delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativas minudentes para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal da autoridade e de nulidade da prisão;
7) Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4 deverá o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;
8) A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir pela atipicidade da conduta, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.BLOCK_IFRAME_0
Demais pontos
O Supremo decidiu que a quantidade estabelecida vale até que o Congresso legisle sobre o tema. Também definiu que a polícia não poderá consignar no auto de prisão justificativas arbitrárias de caráter subjetivo, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal da autoridade e de nulidade da prisão.
A decisão também estabelece que usuários não podem ser submetidos ao inciso II do artigo 28 da Lei de Drogas, que aplica a sanção de prestação de serviços à comunidade. De acordo com a corte, essa é uma pena corporal, que, portanto, tem natureza penal.
Com isso, serão aplicadas ao usuário apenas as sanções administrativas de advertência sobre os efeitos da droga e comparecimento a programa ou curso educativo.
Também ficou decidido que a autoridade policial deverá notificar o usuário a comparecer a Juizado Especial Criminal até que o Conselho Nacional de Justiça estabeleça um novo rito.
Outro ponto importante, mas que não consta da tese, é que o CNJ deverá promover mutirões carcerários para apurar e corrigir prisões decretadas em desacordo com os parâmetros fixados pelo Supremo, o que deve levar à soltura de usuários.
O tribunal também vedou o contingenciamento do Fundo Nacional Antidrogas e estabeleceu que parte da verba seja usada para campanhas sobre o uso de drogas.
O julgamento
O tribunal analisou o crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, que fixa penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”.
Em tese, as penas previstas na norma já não deveriam levar o usuário à prisão. Na prática, no entanto, a falta de distinção entre usuário e traficante faz com que, em diversos casos, usuários sejam classificados como traficantes, ficando sujeitos a penas privativas de liberdade.
O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, apresentou seu voto em agosto de 2015. Para ele, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.
O voto do relator se baseia no argumento da Defensoria Pública de São Paulo, autora do recurso julgado. A alegação dos defensores paulistas é que o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade.
Eles também afirmam que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser consideradas criminosas as condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
De acordo com o relator, o direito de personalidade “não está limitado a determinados domínios da vida”. Ele se aplica, segundo o ministro, “a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o direito à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação”.
“Nossa Constituição consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. Deles pode-se extrair o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação”, sustentou Gilmar.
Depois do voto do relator, os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin votaram pela descriminalização do porte de maconha, ainda em 2015. O caso, então, foi paralisado por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em acidente de avião em 2017.
O julgamento foi retomado em 2 de agosto de 2023, com o voto-vista de Alexandre, que propôs a fixação de parâmetros objetivos para diferenciar usuários de maconha e traficantes. De lá para cá, também houve paralisação em duas ocasiões, em que pediram vista os ministros André Mendonça e Dias Toffoli.
Voto de Alexandre de Moraes
Alexandre apresentou um denso voto, baseado principalmente em estudo feito pela Associação Brasileira de Jurimetria. O levantamento conclui, por exemplo, que jovens, negros e analfabetos são considerados traficantes com maior frequência, mesmo quando presos com quantidade de droga inferior à apreendida com pessoas acima dos 30 anos, brancas e com ensino superior.
Pessoas analfabetas, por exemplo, são consideradas traficantes quando presas com uma média de 32 gramas de maconha, enquanto a média para pessoas com ensino superior é de 49 gramas, de acordo com a pesquisa.
Alexandre também destacou que a falta de parâmetros claros para diferenciar usuários e traficantes levou a uma discricionariedade “exagerada” das autoridades policiais, do Ministério Público e do Judiciário.
“Triplicou-se em seis anos o número de presos por tráfico de drogas, mas não triplicamos o número de presos brancos, com mais de 30 anos e ensino superior, e, sim, o de pretos e pardos sem instrução e jovens. É preciso garantir a aplicação isonômica da Lei de Drogas para evitar que, em virtude de nível de instrução, idade, condição econômica e cor da pele, você possa portar mais ou menos maconha”, disse o ministro.
Para Alexandre, a quantidade é um critério importante, mas não o único. De acordo com o ministro, outros pontos devem ser considerados na hora de diferenciar o usuário do traficante, como as condições observadas no momento da prisão (se a pessoa foi pega vendendo) ou se itens como balança e cadernos de anotação indicam que o abordado é traficante, entre outros.
Segundo o ministro, a quantidade, nos casos envolvendo pouca droga, cria apenas uma “presunção relativa”, não servindo, sozinha, para qualificar tráfico ou uso.
“Em muitos flagrantes, os únicos elementos descritivos são a quantidade e o testemunho da autoridade policial. É preciso que isso seja mais bem trabalhado e que se analisem outros fatos, como a apreensão de instrumentos como celulares e balanças e as circunstâncias de apreensão.”
Divergência
Zanin abriu a divergência. Para ele, o artigo 28 da Lei de Drogas é o único dispositivo existente na legislação brasileira que diferencia usuários e traficantes. Assim, não é possível declarar a inconstitucionalidade do trecho.
Ele, no entanto, defendeu a diferenciação e propôs inicialmente a fixação de tese no sentido de que deve ser considerado usuário aquele que porta até 25 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas. Depois, reajustou para 40 gramas. Para Zanin, a proposta deve valer como parâmetro adicional, mantidos os critérios já existentes na Lei de Drogas.
“A mera descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta problemas jurídicos e pode agravar a situação que enfrentamos na problemática do combate às drogas, que é dever constitucional. Não tenho dúvida de que os usuários são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias, mas se o Estado tem o dever de zelar por todos, a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde”, afirmou Zanin.
Ainda segundo ele, embora a legislação brasileira sobre drogas precise “evoluir”, não é possível declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. “Como já expus, esse é o único parâmetro relativamente objetivo para diferenciar a situação do usuário da do traficante.”
Demais votos
André Mendonça seguiu Zanin, mas entendeu que o Congresso é que deve decidir, em até 180 dias, qual quantidade deve ser considerada tráfico e qual deve ser considerada para uso próprio.
Antes dessa definição legislativa, o ministro propôs que deve ser presumido como usuário quem porta até dez gramas de maconha.
“Entendo que a questão da descriminalização é uma tarefa do legislador. Na prática, estaríamos liberando o uso (se a corte decidisse pela descriminalização).”
Já o ministro Nunes Marques acompanhou Zanin quanto à definição de 25 gramas para que uma pessoa seja enquadrada como usuária.
Segundo ele, “para além de interferência desproporcional do Poder Judiciário” no Legislativo, a descriminalização poderia “potencializar o tráfico”.
Toffoli abriu uma terceira via que, no entanto, vai no sentido da descriminalização. Ele entendeu que o artigo 28 da Lei de Drogas é constitucional. Mas, segundo o ministro, as sanções aplicadas aos usuários já não são de natureza criminal, e sim administrativa.
Assim, não haveria crime no consumo de nenhuma droga desde que a lei passou a vigorar. Além disso, fez um “apelo” para que o Legislativo, em conjunto com o Executivo e com órgãos competentes, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, defina a quantidade de droga que diferencia usuários e traficantes.
Ao votar na semana passada, o ministro disse que seu voto não era pela descriminalização, o que foi reafirmado ao final de sessão. Na ocasião, disse que seu voto não deveria ser levado em conta para formação da maioria e era uma terceira alternativa.
Nesta terça, no entanto, ele fez uma complementação, afirmando que seu posicionamento é pela descriminalização do consumo de todas as drogas. Segundo ele, esse era o objetivo da Lei de Drogas desde que a norma passou a valer.
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