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É tudo verdade. Ou quase

O novo livro de Chico Buarque, “Bambino a Roma”, passeia pela memória do autor com humor refinado e uma narrativa arrebatadora

Chico Buarque e "Bambino a Roma" (Foto: Francisco Proner / Divulgação)

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Por Regina Zappa, para o 247

Um lugar deve existir Uma espécie de bazar Onde os sonhos extraviados Vão parar (A moça do sonho)

Lá pelas tantas, o narrador avisa que não valeria a pena escrever um diário sobre seu tempo de criança vivido na capital italiana porque, mesmo sendo escritas a quente, as memórias seriam retocadas à medida que fossem postas no papel. Melhor deixar o esquecimento fazer seu trabalho, diz o narrador. Assim, no futuro, a imaginação cobriria as lacunas da memória e “os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido”.

Apesar de misturar ficção e memória, o novo livro de Chico Buarque, “Bambino a Roma”, não deixa dúvidas de que é seu romance mais autobiográfico. O ano é 1953, quando Sérgio Buarque, pai do autor, levou a família para a Itália, onde ocupou durante dois anos a cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma. Na capital italiana, entre oito e dez anos, Chico construiu um universo de lembranças muito particular e precioso a partir das descobertas formidáveis de um garoto “no estrangeiro”. Um universo que entregou ao narrador de suas histórias e onde tudo pode ser verdade, sonho ou invenção.

Com maestria, o autor entra na pele do seu menino e, através do seu olhar arguto e sutil, nos conduz por aventuras e experiências infantis pelas vias e piazzas romanas, e temos certeza: Chico é o bambino e está em Roma.

A paixão nada secreta por Sandrene, sua musa desengonçada da escola americana, para quem ele escreve seu primeiro romance, se desfaz em pó quando ela desperdiça seu talento precoce e lança ao vento as páginas do suado manuscrito do garoto. O prenúncio da veia literária aparece também na despedida de sua professora. Miss Tuttle – a quem o livro é dedicado – diz adeus ao aluno querido com a certeza de que um dia encontrará histórias e romances escritos por F. B. de Holanda.

A história segue um ritmo homogêneo e acomoda memória e invenção sem desvios abruptos. O incômodo de ser “estrangeiro” e ter de se adaptar a novos códigos não impede que o menino voe com sua bicicleta de pneus brancos pelas ruas próximas à sua casa e ao colégio, e faça amizade com o filho do verdureiro ou com o garçom do restaurante frequentado pela família aos domingos. Quando encontra, em êxtase, em uma livraria do bairro, o livro de Sérgio Buarque, “Raízes do Brasil”, traduzido para o italiano, o menino descobre a estatura do pai.

Nem é tudo verdade, nem tudo é invenção. A atriz Alida Valli, com quem o bambino dança uma valsa na festa do seu amigo, é real. Mas teria ele encontrado de verdade a famosa atriz italiana? E teria ela se interessado em dançar com o pirralho? Não importa. Como dizem os italianos: se non è vero, è molto ben trovato.

Depois do angustiante e emblemático “Anos de Chumbo”, Chico volta à literatura com a leveza e graça do seu “Bambino”. O humor percorre toda a narrativa e, em muitos momentos, o leitor deixa escapar boas risadas. Como no começo do capítulo em que os filhos, reunidos em torno da mãe, uma condessa italiana à beira da morte, decidem que ela não pode morrer sem aprender “de uma vez por todas” as regras do impedimento no futebol. Ou como nas histórias (talvez traumáticas) da mão despudorada de Mister Welsh.

Por vezes, o narrador abandona a memória antiga para voltar aos dias em que viveu em Roma em outras ocasiões, já adulto. Passou um ano em Roma, no exílio, quando o Brasil vivia a ditadura, e quando ainda não sabia que as lembranças o perseguiriam até que retornasse outra vez, agora já em vias de escrever seu livro, apenas para consolidar a memória e tornar as reminiscências mais palpáveis. Como na visita que fez ao apartamento em que morou com a família, agora habitado por mafiosos russos. Será?

Por fim, ao escrever suas memórias, o autor vai recobrando a serenidade e se livra da ânsia de desvendar a vida do bambino em Roma. Quem liberta o “escritor atormentado por recordações da infância” é o próprio ato de escrever. Mas também o antigo amigo Amadeo, filho do verdureiro, que ele reencontra muito depois e que agora, já velho, não quer saber de lembranças atormentadas. Amadeo diz a ele, nada sutilmente: “Torna al tuo paese, figlio di puttana.” E com o livro concluído, o bambino pode, finalmente, voltar em paz para o seu país.

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