Exclusivo: entenda por que o Banco Central fere a Constituição ao elevar demais os juros
Ação no STF não quer determinar a Selic no lugar do Banco Central, e sim levar a autoridade monetária a dialogar com pessoas de fora do mercado
Por Paulo Henrique Arantes - O PDT ingressou em 23 de dezembro com uma arguição de descumprimento de preceito constitucional (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o Banco Central, motivado pela última ata do Comitê de Política Monetária (Copom), que elevou a Selic em 1%, para 12,25%. Na verdade, a atuação do BC nos últimos tempos dá todos os motivos para a medida judicial: juros excessivamente elevados ferem o pacto social que norteia a Constituição Federal, prejudicam o empenho do governo – e da nação, exceto a parte da Faria Lima – para que as classes mais baixas tenham e mantenham emprego, melhorem a qualidade do seu consumo, especialmente o alimentar, e vivam melhor, enfim.
Os argumentos que embasam a ADPF, que caiu nas mãos do ministro Edson Fachin, são claros. Os impetrantes não querem que o STF determine a Selic no lugar do Banco Central, mas que leve a autoridade monetária a dialogar com pessoas de fora do mercado financeiro. Afinal, o Brasil não é a Faria Lima.
Entrevistamos com exclusividade o advogado Lucas Gondim, que representa o PDT na ADPF junto com Walber Agra, Nara Cysneiros e Dayanne Rodrigues. Na sequência da entrevista com Gondim, veja o que o constitucionalista Pedro Serrano diz a respeito.
PHA - A depender do entendimento do ministro Fachin, a ADPF pode resultar em que?
Lucas Gondim - Pretendemos que a ADPF inaugure um verdadeiro diálogo institucional relacionado à política monetária. Não pretendemos que o STF se substitua à autoridade monetária - e isso é afirmado na petição diversas vezes – mas que obrigue o nosso BC a, se não aprimorar, ao menos ter o ônus de justificar, perante a sociedade, os critérios da política monetária. O exemplo da inflação de alimentos é paradigmático. Como isso pode ser um critério de motivação razoável para um aumento tão expressivo na taxa básica de juros? Não estamos falando ainda sequer da chamada “Constituição econômica”, mas simplesmente dos deveres de razoabilidade, moralidade e justificação que devem guiar todas as decisões administrativas.
O que a ADPF pode viabilizar, assim, é colocar o BC para discutir esses temas diretamente com a academia e com os setores profundamente afetados por suas decisões, e não apenas com o mercado financeiro. A ação pode instaurar uma dinâmica complexa de diálogo e aperfeiçoamento de processos decisórios, uma espécie de processo estrutural. Como afirmei, ainda que não reformule a política monetária por completo, que se imponha sobre o BC um ônus maior de justificação perante a sociedade.
PHA - O BC é autônomo, mas não está acima da Constituição. Gostaria que o senhor explicasse essa relação
Lucas Gondim - A autonomia precisa ser compreendida como um conjunto limitado e pré-determinado de garantias de que dispõe a instituição perante o Executivo e, de certa forma, o Legislativo, pela existência de quóruns qualificados para a aprovação e exoneração precoce de seus dirigentes.
A autonomia, no caso do Banco Central, não tem uma dimensão absoluta ou principiológica. Muitos querem tratar a autonomia do BC como se ela estivesse no mesmo patamar de postulados fundantes de nosso ordenamento, como a autonomia dos entes federativos ou a separação dos Poderes. Não estou afirmando que a autonomia não existe: mas ela é limitada nos termos do que dispõe a LC 179/2021 e não se impõe, por óbvio, sobre outros mandamentos constitucionais como a inafastabilidade da jurisdição, os princípios da administração pública e os da Constituição econômica.
PHA - Está provado que o juro alto (ou elevado exageradamente), ao passo que pode frear a inflação, desacelera a economia, favorecendo o desemprego, a queda do consumo das famílias etc. Ao ignorar esses aspectos, o BC distorce seu real papel?
Lucas Gondim - Uma parte definitivamente “esquecida” da Constituição de 1988 é a Constituição econômica. O pacto civil e social que emergiu dos escombros do regime militar erigiu algumas diretrizes para o Tesouro e para a economia: se, por um lado, a Constituição se preocupa com o planejamento e com o equilíbrio das contas governamentais, ela também direciona a economia para objetivos muito específicos, como a busca do pleno emprego, a valorização do trabalho, a erradicação da marginalização e das desigualdades. É difícil imaginar a contemplação desses objetivos num país que freia artificialmente o seu crescimento para conter uma inflação de alimentos, voltando ao exemplo anterior. Sabemos que há um problema na meta de inflação – e isso não é uma questão objeto da ADPF, nem a cargo do BC, mas do CMN. Mas dentro de seu mandato – perseguir a meta – o BC não pode esquecer que existe toda uma normatividade de estatura supralegal, acima de sua lei de autonomia, que vincula a perseguição de objetivos muito específicos. Diante dessa taxa básica de juros, cria-se um cenário em que se torna pouco atrativo ao detentor de capital investir no capital produtivo, que gera emprego e renda e muda realidades sociais e espaciais.
O BC em nenhum momento se preocupa com os impactos de suas decisões sobre isso. E, repito, para que não nos acusem de “aventura”: não pretendemos que o STF se substitua à autoridade monetária, mas que o BC passe a ter o ônus de, perante a sociedade brasileira, de afirmar naqueles Comunicados do Copom, tão celebrados pela imprensa, que está ciente dos efeitos sociais perversos de sua decisão e que a toma mesmo assim porque entende que é a melhor para o cumprimento de seu mandato. Sendo assim, a discussão passa a ser outra. O que não pode persistir é a realidade atual: um BC completamente alheio à incidência da Constituição econômica. O que determina que o aumento da Selic seja de 1,0 p.p. e não de 0,75 p.p., por exemplo? Evidentemente é uma decisão política, e talvez nunca deixe mesmo de sê-lo. Não há um modelo matemático, nem defendemos que possa ou deva haver. Mas é preciso que haja um custo argumentativo, um custo político maior da autoridade monetária ao definir esse escalonamento.
PHA - Por que o BC se baseia apenas nas análises do mercado financeiro? Ele está capturado?
Lucas Gondim - O PDT não é o primeiro a questionar a metodologia de consulta e consolidação do Boletim Focus. Trata-se de uma discussão antiga, e esperamos que o STF não ignore essas contradições. Sabemos que o Boletim FOCUS não é a única contradição do BC no que tange à sua eventual captura.
Há também diversos trabalhos sobre o tema, e esperamos que no curso do diálogo institucional a ser instaurado na ADPF, esses especialistas tenham voz e vez para levar ao conhecimento do Judiciário, da sociedade, e do Banco Central as suas teses. Repetimos: diversamente do que algumas críticas – feitas por quem provavelmente sequer leu a íntegra da petição inicial fez – em nenhum momento pretendemos que o STF baixasse os juros numa canetada, numa marretada. Inclusive justificamos, por isso, a ausência de um pedido de liminar, como é praxe nessa espécie de ação. Ao final, o que pedimos não é que o STF fixe as taxas de juros, mas que obrigue o BC a rever os seus parâmetros de justificação, inclusive o Boletim Focus, e entendemos que as três linhas de revisão propostas são mais do que razoáveis – e não “aventureiras”. Veja-se: a um, queremos que o BC passe a ponderar o impacto de suas decisões sobre a trajetória da dívida e o orçamento fiscal. A diferença entre subir os juros 0.5 p.p. ou 1.0 p.p. tem um impacto bilionário sobre a rolagem da dívida. A dois, queremos que o BC leve em conta os impactos de suas decisões sobre os outros objetivos postos pela Constituição econômica, para que tenha ao menos o custo de accountability perante a sociedade. A três, queremos a revisão da metodologia do Boletim Focus, considerando que o mercado financeiro não pode ser o único setor da economia consultado para a definição das expectativas da economia.
PEDRO SERRANO: “EU CONCORDO COM A COLOCAÇÃO DO PDT” - Mais prestigiado constitucionalista do país, Pedro Serrano afirmou a este jornalista que concorda com as justificativas do PDT para ingresso de ADPF contra o Banco Central no Supremo Tribunal Federal.
Eis o que nos disse Serrano:
“No site do Banco Central está dito que sua função é controlar a inflação e definir a taxa de juros. Mas não é bem assim. O BC deveria levar em conta outros fatores na análise macroeconômica. Teoricamente, a taxa de juros é usada para conter a inflação, mas na prática tem sido uma ação política discricionária que estabelece uma política pública.
“Acho que, como bem colocou o PDT, o Banco Central é autônomo em relação ao governo, especialmente pelo fato de seus dirigentes terem um mandato. Mas não é independente do Estado. Ninguém é independente do Estado, não existe isso nem quanto aos bancos particulares. O Banco Central, tanto quanto os bancos particulares, tem que cumprir a lei e a Constituição.
“O Banco Central não pode resistir a políticas públicas do governo. É uma autarquia, em regime jurídico especial, do Estado brasileiro.”
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