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A democracia pede socorro para ir além da representatividade (vídeo)

Novo ciclo democrático é urgente. Analistas e militantes falam ao 247 sobre política, estupro e movimentos sociais. Veja também gráficos e estatísticas

Atos contra o estupro e a parte interna da Câmara dos Deputados (Foto: Marcha Mundial das Mulheres I Rovena Rosa / Agência Brasil / Lourival Augusto / Agência Câmara)

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Por Leonardo Lucena

O homem, com individualismo e falta de formação educacional, “sequestra” o conceito de liberdade, ignora a história e o patriarcado, para justificar a cultura do estupro especialmente em periferias. A mente e o corpo “livres” das mulheres negras, principalmente, não podem se resumir à liberdade de voto, o que torna mais urgente a necessidade de um ciclo pós-democrático, conceito cada vez mais conhecido nos últimos anos pelo filósofo argelino Jacques Rancière, 84 anos.

Militantes de movimentos sociais aumentaram as denúncias contra o estupro nos últimos 30 dias após deputados federais aprovarem a urgência da análise do Projeto de Lei 1904/2024 na Câmara. A proposta, que será debatida no Legislativo neste segundo semestre, equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em caso de estupro em crianças. A população de cor negra é a mais afetada pela pauta discutida no Congresso.

Os 135 deputados federais negros, pardos ou pretos representaram 26% dos 513 mandatos na Câmara, e as mulheres corresponderam a 17% das cadeiras, apontaram números das eleições de 2022, quando foram eleitas 91 congressistas para a Casa, alta de 18% em comparação com as 77 deputadas eleitas em 2018, e de 9% em relação aos 124 parlamentares de cor preta e parda escolhidos há quatro anos. Os números são mais preocupantes quando comparados à população. O Brasil tem 56% dos 212 milhões de habitantes autodeclarados pardos e pretos na pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - Censo 2022, com dados de 2021. As mulheres representaram 52,8% (veja mais estatísticas ao longo da reportagem).

De acordo com a historiadora Carla Teixeira, “para a efetiva democratização institucional do Brasil é preciso que haja a presença de mulheres e negros em espaços de poder nos partidos políticos, nas candidaturas eletivas e nos espaços institucionais”. “É fundamental garantir recursos financeiros para campanhas, ações educativas para o combate à desigualdade de gênero e raça”, afirmou ela, doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

A estudiosa defendeu “ações afirmativas, como a reserva legal de cotas para mulheres em alguns cargos, tal qual é praticado em algumas instâncias do Poder Judiciário”. A analista também possui Mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2015) e Graduação na mesma área pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2012).

“O Brasil é um país formado por uma sociedade pós-colonial caracterizada por elevado grau de exclusão e violência política, econômica, sanitária e social. Ainda que tenhamos caminhado para o fortalecimento de direitos, principalmente após a Constituição de 1988, é fato que não logramos conquistar efetivas reformas institucionais para o aprofundamento do Estado Democrático de Direito. A herança da Ditadura Militar em certa medida deixou raízes em nossas culturas políticas que se refletem na violência política que atingem principalmente as mulheres negras”, acrescentou Carla.

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Carla Teixeira e um ato contra o estupro. Foto: Divulgação I Rovena Rosa / Agência Brasil

Segundo a historiadora, “a mobilização política é importante, para forçar os espaços institucionais a caminharem na direção esperada pela sociedade”. “A reação da sociedade, liderada por mulheres, impediu o avanço da proposta (PL 1904) e incitou um repúdio generalizado à ideia, mais uma vez surpreendendo a extrema-direita”, continuou.

“A participação de mulheres, negros, indígenas e pessoas LBTQIA+ é fundamental para a efetiva institucionalização de direitos em nosso país”, pontuou a historiadora, acrescentando que as mulheres, “por terem uma sociabilidade muitas vezes direcionada para o cuidado, possuem maior conhecimento de causa sobre temas como saúde, aborto, assédio, maternidade, igualdade de gênero etc”.

“Ainda que a legislação tenha avançado nos últimos anos, no sentido de promover candidaturas de mulheres, é fato que sua eficácia não foi a esperada. Muitos partidos descumpriram as regras eleitorais e, recentemente o Congresso Nacional, ameaçou votar uma Emenda Constitucional para anistiar os partidos que não cumpriram as determinações. O parlamento cria regras de promoção da igualdade para depois perdoar aqueles que não seguiram as determinações. É também por isso que pouco se avança. O Brasil segue sendo um dos países que tem seu parlamento e judiciário menos representativos do conjunto da sociedade””.

Integrante da Marcha Mundial das Mulheres (MMA), que atualmente, está organizada em 20 estados do Brasil, conforme o site da entidade, Rayanne Almeida, 29 anos, fez críticas à “precariedade” do Congresso Nacional e destacou a importância de “um feminismo sociocultural, de dentro das periferias”. “Não é um feminismo raso”, afirmou.

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Manifestação na cidade de São Paulo contra o 'PL do Estrupro' e Rayanne Almeida, com uma camisa, na qual está escrito 'sem golpe, sem anistia e misoginia'. Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil I Divulgação

“A bancada do Congresso não é majoritariamente das mulheres, das pessoas que vieram da periferia. Temos uma PL tramitando em regime de urgência sobre o corpo da mulher. Criança não é mãe, estuprador não é pai. O direito ao nosso corpo é um direito nosso”, afirmou. “Estamos na luta, uma marcha que se fundou na América Latina toda. Incentiva a candidaturas de mulheres periféricas, feministas, que podem ser potência. Quando pedimos ‘Fora Arthur Lira’. Estamos pedindo o direito legítimo do nosso corpo. Pela vida das mulheres”.

A MMM inspiração para a criação da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) partiu de uma manifestação que aconteceu no Canadá, em 1995. Naquele ano, 850 mulheres percorreram cerca de 200 quilômetros, pedindo, simbolicamente, “Pão e Rosas”. Alta do salário mínimo e mais direitos para as imigrantes foram algumas das conquistas das mulheres no país, que fica na América do Norte, fazendo fronteira com os Estados Unidos.

Estatísticas e depoimentos

Uma pesquisa, divulgada pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, apontou que 95% das mulheres afirmaram sentir medo de estupro. Foram 2 mil entrevistados com 16 anos ou mais de idade, entre 27 de janeiro e 4 de fevereiro de 2022, pela internet. A preocupação foi maior entre mulheres jovens e negras - 87% das entrevistadas pretas disseram ter esta preocupação e 88% das pessoas com idade entre 16 e 24 anos.

Em outro Censo 2022, divulgado pelo IBGE em dezembro de 2023, mais de 92 milhões de pessoas no Brasil se declararam pardos (45,3%). Pela primeira vez desde 199 este grupo foi maioria. Cerca de 88,2 milhões de pessoas se declaram brancas (43%), 20,6 milhões pretas (10%), 1,7 milhão indígenas (0,8%) e 850,1 mil amarelas (0,4%).

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Protesto pelos direitos das mulheres. Foto: Marcha Mundial das Mulheres

Estudante de Serviço Social, Marxwell Lobato, 30 anos, alertou para o fato de que, “no processo de reconstrução da democracia”, após a Ditadura Militar (1964-1985), “as primeiras minorias a serem atacadas são as mulheres”.

Na entrevista, Lobato acrescentou que a “relação de gênero” é uma das bases para “manter a sociedade injusta e desigual”. “(O protesto) é de grande importância, um ato plural pela vida das pessoas. A democracia é participativa. Ninguém dá ela pra gente, a gente tem que tomar”, continuou.

“Retomar a cultura de atos massivos. A configuração do Congresso tem de ser pautada com o povo na rua. A gente precisa mais do que nunca defender Estado laico, se não teremos retiradas de direitos”.

A auxiliar de Enfermagem, Tereza Oliveira, 73 anos, disse que “está faltando política pública”. “Fizeram um cerco. Essa pauta estava engavetada, de repente surge do nada. Quando a gente viu, estava aprovada. Tenho uma neta de 10 anos e tenho maior zelo por ela. Fico preocupada com as demais mulheres das periferias”.

A profissional da área da Saúde reforçou que, “sem políticas públicas para as mulheres, a gente não chega em canto algum”. “Medos de ameaças. Os estupradores não estão para brincar. Se ela denunciar, vai ser uma mulher morta. Não temos esse aparato dos órgãos públicos, da polícia”, complementou.

“A gente vibra quando acontece de estuprador ser preso. Delegacias funcionam, precárias. Tem dados que a gente não acredita. Muito maior (e não é divulgado). Botam um índice que não é a realidade”.

Integrante do Coletivo de Entidades Negras (CEN-PE), a ativista Marta Santiago afirmou que os eleitores não sabem mais “em quem confiar”. “Esse patriotismo machista que nos cala e nos mata, chamo de extermínio da mulher”.

A militante afirmou que “os partidos precisam dar às candidatas as ferramentas necessárias” para maior representatividade feminina na política. Marta sinalizou que as ações voltadas para diminuir a desigualdade de gênero não devem ser implementadas apenas para as mulheres acima dos 18 anos. “Sinto falta de uma atuação diferenciada nos Conselhos Tutelares em relação às adolescentes (meninas) em suas políticas de atuação”, acrescentou.

A ativista comentou sobre a importância das mobilizações sociais. “O apagamento da verdadeira história da população negra faz parte de um sistema de opressão que alimenta a narrativa de subalternidade, de violência e de falta de representatividade. o movimento negro se fortaleceu e foi responsável por diversas conquistas de nossa raça, que por séculos foi injustiçada e cujos reflexos das políticas escravocratas ainda são visíveis na sociedade atual”.

Segundo a ativista, “mesmo com o nosso governo federal está atuando em prol do povo sinto a falta de políticas públicas destinadas a maior presença do negro no mercado de trabalho e nos campos educacionais”. “Também, a efetiva aplicabilidade das leis que buscam a criminalização do racismo e a plena aceitação e respeito à cultura e herança histórica”.

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Ato na cidade do Rio de Janeiro e Marta Santiago. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil I Divulgação

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher foi estuprada a cada oito minutos no Brasil nos seis primeiros meses de 2023. Os números apontaram que 74,5% delas são consideradas vulneráveis por serem menores de 14 anos ou possuírem enfermidade, deficiência mental ou outra causa que impeça o consentimento. Foram registrados 34 mil casos de estupro de meninas e mulheres, aumento de 14,9% na comparação com o mesmo período do ano anterior.

O Sudeste foi a região com o maior número de casos (10.955), seguida por Sul (7.331), Nordeste (7.220), Norte (4.805) e Centro-Oeste (3.689).

A maior quantidade de casos foi identificada no estado de São Paulo (5.671), seguido pelo Paraná (3.229) e pelo Pará (2.545). A quarta posição foi do estado do Rio de Janeiro (2.403). Santa Catarina aparece na quinta colocação (2.088) e o Rio Grande do Sul na sexta (2.014), Goiás teve 1.602, em sétimo, e Pernambuco (1.166) em oitavo.

Qualidade de vida para mulheres

O estudo "Women, Peace and Security Index", criado pelo Instituto para Mulheres da Universidade de Georgetown (EUA) apontou o Brasil em 80º lugar (empatado com Fiji e Suriname) no ranking de 170 países em que foram pesquisadas a qualidade de vida para o público feminino - inclusão das mulheres (econômica, social e política), acesso à justiça e segurança (individual, comunitária e social) em 170 países. A média brasileira foi de 0.734. A média global é de 0.721. O estudo foi divulgado em março de 2022.

Os cinco primeiros lugares foram de países europeus:

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A Suíça ficou em sexto lugar 0.898. A Suécia ficou na sétima colocação (0.895) e Áustria, em oitavo (0.891). Reino Unido ficou em nono (0.888) e a Holanda na décima posição (0.885).

Os cinco piores lugares foram de países asiáticos:

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As demais colocações foram do continente africano - o Sudão do Sul (0.541) apareceu na sexta colocação, Chade (0.547) na sétima, República Democrática do Congo (0.547), em oitavo, Sudão (0.556) em nono e Serra Leoa (0.563) em décimo.

Pernambuco: números, regiões e municípios

Em Pernambuco, a Secretaria de Defesa Social (SDS) afirmou que foram registrados 988 casos de estupro no estado entre janeiro e maio deste ano. Foram 562 casos no interior pernambucano, 253 na região metropolitana e 173 em Recife (PE), capital do estado.

No ranking das cidades pernambucanas, Jaboatão dos Guararapes, que fica no Grande Recife, teve 74 casos, em segundo lugar. Localizado no Sertão, Petrolina teve 40. Caruaru, no Agreste, contabilizou 36 casos.

Da quinta à oitava posição ficaram municípios da região metropolitana - Olinda (35), Paulista (24), Cabo de Santo Agostinho (23) e Ipojuca (22).

Garanhuns, no Agreste, registrou 20 casos. Outra cidade agrestina (Gravatá) e Igarassu (Grande Recife) contabilizaram 16 casos casa. Camaragibe, na região metropolitana, teve (15).

O 247 entrou em contato com a SDS, por meio da assessoria de imprensa da instituição, mas não teve retorno (o espaço continua aberto para uma possível manifestação da secretaria).

Desigualdades entre as capitais brasileiras

Recife ocupou o segundo lugar no ranking do Mapa da Desigualdade entre as Capitais Brasileiras, desenvolvido pelo Instituto Cidades Sustentáveis (ICS) e divulgado em março de 2024. A pesquisa, que teve o resultado divulgado nesta terça-feira (26), analisa áreas como educação, saúde, violência, assistência social, meio ambiente e direitos humanos.

O Mapa estabeleceu um ranking para classificar as capitais de todos os estados brasileiros, registrando notas entre 373 e 677. Recife recebeu a pontuação 392 e ficou na frente apenas de Porto Velho (RO), que somou apenas 373 pontos. A capital pernambucana acumula a segunda maior taxa de desocupação do Brasil, com 15% da população desempregada

Os cinco primeiros foram: 1. Curitiba, 2.Florianópolis, 3.Belo Horizonte, 4.Palmas e 5.São Paulo. Os próximos cinco foram 6. Vitória, 7. Cuiabá, 8. Porto Alegre, 9.Goiânia e 10.Campo Grande.

Na sequência apareceram 11. Rio de Janeiro, 12.Natal, 13.Boa Vista, 14.Teresina e 15.Aracaju. Depois vieram 16. João Pessoa, 17. Salvador, 18. Macapá, 19. São Luís e 20.Fortaleza.

Os seis com os piores índices foram 21. Maceió, 22. Rio Branco, 23. Manaus, 24. Belém, 25. Recife e 26. Porto Velho.

O que dizem os políticos

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou nesta terça-feira (18) que vai criar uma comissão representativa para discutir o projeto de lei que equipara aborto após a 22ª semana a homicídio, e afirmou que o debate sobre o tema na Casa ficará para o segundo semestre, após o recesso parlamentar.

"O colégio de líderes aqui presentes deliberou também debater – debater – esse tema de maneira ampla no segundo semestre, com a formação de uma comissão representativa, que desta forma o açodamento ou as perguntas não terão como fluir, porque nós só iremos tratar disso após o recesso, na formação desta comissão", declarou Lira à imprensa.

"Reafirmar a importância do amplo debate. Isso é fundamental para exaurir todas as discussões, para se chegar a um termo que crie, para todos, segurança jurídica, humana, moral e cientifica sobre qualquer projeto que possa a vir a ser debatido na Câmara. Nunca fugiremos a essa responsabilidade de fazer o debate e fazê-lo com exatidão e nunca faltar com espírito aberto e democrático para que a sociedade participe", acrescentou.

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Arthur Lira. Foto: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, criticou o projeto. Nas redes sociais, a titular da pasta afirmou que a gravidez na adolescência ou na infância tem consequências sociais, econômicas, psicológicas e impactos na saúde da jovem.

Segundo comunicado divulgado pela ministra em junho, os números do Sistema Único de Saúde (SUS) apontaram que, em média, 38 meninas de até 14 anos se tornam mães a cada dia no Brasil, o que mostra o desafio que é para uma menina acessar o direito ao aborto legal. Em 2022, foram mais de 14 mil gravidezes entre meninas com idade até 14 anos no país.

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Cida Gonçalves. Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, demonstrou posicionamento contrário à proposta analisada na Câmara. “Precisamos garantir no SUS o atendimento a meninas e mulheres vítimas de estupro e em risco de vida. O PL 1904 é injustificável e desumano”.

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Nísia Trindade. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

O ministro dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida, afirmou que a proposta é inconstitucional. “Fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres violentadas a uma indignidade inaceitável, a tratamento discriminatório, o que não é permitido por nenhum parâmetro normativo nacional, ou internacional a que o Brasil tenha aderido”, acrescentou.

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Silvio de Almeida. Foto: Agência Câmara

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